No post anterior eu argumentei que a evolução convergente de peixes cegos de caverna é um tanto esquisita, se avaliada a luz da evolução teísta, visto que seria necessário postular um deus caprichoso ou enganador para se conformar com as observações. A solução seria, então, propor um designer interventor que produzisse um efeito no mundo natural puramente indistinguível de processos materiais. Como isso pode ser feito?
Ao meu ver, a melhor proposta para como solucionar isso é a defendida por Elliott Sober:
A idéia pode ser resumida da seguinte forma: Deus interfere na evolução manipulando algumas mutações genéticas. Quantas, você pergunta? Bem, o suficiente para serem imperceptíveis.
Uma analogia pode ajudar a entender. Suponha que você tem um número muito grande de eventos aleatórios como, digamos, lançamentos de uma moeda não-viciada. De todos os lançamentos, aproximadamente 50% deram cara e 50% deram coroa. O evolucionismo teísta seria o equivalente a chegar na 457o lançamento, que deu por acaso coroa e dizer "Deus fez com que esse lançamento desse coroa". Ou seja, uma mutação ou outra é causada por Deus, como por exemplo a que causou o surgimento dos tetrápodes, ou que me de um esmalte dentário praticamente imune a caries.
A parte boa da ideia, é que é completamente infalseável, como qualquer boa ideia religiosa deve ser para não cair nas garras da "ciência materialista" (sic). A parte ruim é que a intervenção divina é totalmente irrelevante para entender qualquer padrão geral e, de quebra, torna Deus impotente frente as forças materialistas que geram todo o resto das mutações. Deus pode ter sido responsável por criar uma mutação benefica que foi varrida de uma população por deriva, ou mesmo que uma mutação puramente natural foi melhor do que mutação causada divinamente. Lembrando que Deus não poderia fixar uma mutação desvantajosa (isso seria contra a seleção natural e distinta da evolução materialista) ou causar uma pletora de mutações improváveis para criar uma estrutura complexa (isso seria Design Inteligente e fácil de diagnosticar).
A única "contribuição" dessa ideia é permitir aos seus defensores dizer que, em algum momento da história da vida na terra, Deus pode ter interferido através de uma mutação. Talvez. Ninguém pode saber ao certo.
Agora, Sober não é nenhum tonto: ele é um dos mais importantes filósofos contemporâneos da evolução, mas eu acho que ele está numa empreitada quixotesca nesse ponto, e pelos motivos errados. E os motivos não são nem sequer religião, visto que Sober é ateu. O problema dele é com os "novos ateus" e sua retórica. Especificamente, com o fato deles afirmarem (ou darem a entender) que religião e evolução são incompatíveis ou, mais especificamente, que uma concepção neo-darwinista da evolução implica na inexistência de um designer capaz de guiar as mutações.
O argumento que Sober tenta rebater é o seguinte:
P1) Até onde os cientistas puderam observar mutações são aleatórias.
P2) Mutações aleatórias não podem ser mutações guiadas.
P3) Temos modelos deterministicos de todos os outros fatores envolvidos na evolução das espécies
C) Não é possível ter mutações guiadas, ou não é possível que Deus esteja intervindo na evolução através de mutações.
Sober argumenta que tal linha de raciocínio é falaciosa, se baseando na equivocação da palavra "aleatória". Quando um biólogo fala de mutação como sendo aleatória, ele não quer dizer que as mutações são não-causadas, mas sim que a probabilidade de uma mutação ocorrer é independente de se ela é benéfica ou deletéria. Então quando um teólogo diz que deus guiou a evolução por mutações aleatórias, os termos "guiada" e "aleatórias" não estão em contradição pelo simples fato de que elas não são ideias opostas nesse contexto.
E ele está absolutamente correto nesse ponto: a teoria evolutiva moderna não implica a inexistência de forças guiadoras conscientes, apenas limita seu escopo à quase irrelevância (quaisquer que sejam elas). O teísta ainda pode tentar enfiar seu deus em alguma dessas mutações aleatórias (mas não em todas) se ele quiser.
Nada disso, claro, é um argumento realmente a favor do evolucionismo teísta: afirmar que deus fez X ou Y durante a evolução ainda continua sendo um argumento de ignorância similar aos proponentes do Design Inteligente (e para esse ponto, volto a indicar o post do Giuliano). O que Sober está fazendo é apenas apontar como Evolução e intervencionismo divino são compatíveis. As evidências para isso ainda são zero.
6 comentários:
Oi Fábio. Acho que é este exatamente o ponto de Sober. Certas formas de Deus 'ultraintervencionistas' são realmente vedadas pelas evidências, mas outras mais sutis são compatíveis, mas não são necessárias e muito menos explicativas. Isso demarca bem o tipo de posição que um teísta evolucionista pode manter e ser coerente com o que se sabe sobre evolução, adotando uma posição instrumentalista sobre ciência e com a definição de acaso que podemos ter acesso pelas evidências. Qualquer coisa além disso é incompatível com os conhecimentos presentes e,portanto, não pode ser considerada científica. Neste caso entramos em terrenos eminentemente filosóficos e onde os argumentos contra existência de Deus botam o pé na porta, amparados pela ciência. Sobre tem todo este trabalho para explicar o escopo da argumentação científica e onde passamos a entrar na filosofia que, como ele diz no artigo em que explica esta teses ilustrada no vídeo, não é um palavrão.
The more evolutionary theory gets called an atheistic theory, the greater the risk that it will lose its place in public school biology courses in the United States; if the theory is thought of in this way, one should not be surprised if a judge decides that teaching evolutionary theory violates the constitutional principle of neutrality with respect to religion. Indeed, the risk is more profound, since what happens in public education often has ramifications for what happens in the wider culture. Creationists have long held that evolutionary theory is atheistic; defenders of the theory are not doing the theory a favor when they agree. Atheists who think that evolutionary theory provides the beginning of an argument for disbelieving in God should make it clear that their arguments depend on additional premises that are not vouchsafed by scientific theory or data. Philosophy is not a dirty word.
continua ...
... Continuação
As preocupações de Sober precisam ser compreendidas dentro do contexto educacional e político dos EUA, onde o banimento do ensino de criacionismo tradicional e do DI se escora principalmente em seu lado religioso e, portanto, na primeira emenda. [Especialmente por que os critérios demarcatórios entre ciência e não-ciência usados são, geralmente, profundamente problemáticos, especialmente quando expressos a prioristicamente]. Neste sentido, a defesa de que a ciência, de modo geral, e, especificamente, a biologia evolutiva, seja ateísta (no sentido de ser antagonisticamente antiteísta) é considerada complicada do ponto de visa legal, abrindo precedentes perigosos, e já tem sido explorada pelos criacionistas. Sober, de uma maneira muito melhor do que Ruse, lembra apenas que este não é o caso. As ciências, mesmo a biologia evolutiva, são compatíveis com certas formas de teísmo que não pisam nos calos das evidências e acomodam-se instrumentalmente as evidências e aos princípios científicos. Por assim dizer, escondem-se em nossa ignorância dos detalhes e das incertezas de nossa condição epistêmica.
Claro, para a maioria das formas de teísmo, isso não é suficiente, mas esta é outra questão. Assim como, apesar de ser uma questão relacionada, também é uma questão distinta se o naturalismo metafísico, e seu corolário o ateísmo, é mais cogente e bem fundamentado do que o sobrenaturalismo, pois para argumentarmos a favor desta posição são necessárias considerações extras, de natureza metacientífica, além de argumentos científicos. Nestes aspectos, eu concordo com Sober. Esta forma de 'acomodacionismo', na minha opinião, como concede muito pouco e mantém-se, estritamente, coerente, é pragmaticamente adequada e defensável em terrenos como o ensino de ciências, especialmente, de evolução. De modo semelhante, creio que a defesa do naturalismo metodológico em termos pragmáticos é muito mais adequada, não como um princípio a priori, mas como uma mera conclusão a posteriori, potencialmente revogável, de que o sobrenaturalismo historicamente não mostrou-se condutivo a investigação científica, não tendo poder explanatório real e, potencialmente, podendo inibir a investigação livre. Caso os religiosos queiram forçar a barra, aí o ônus é todo deles e eles precisarão arriscar-se e não apenas ficar distorcendo e parasitando a literatura científica com base em argumentos falaciosos e já refutados.
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Sober, E. "Evolutionary Theory, Causal Completeness, and Theism: the Case of 'Guided' Mutation." In D. Walsh and P. Thompson (eds.), Essays in Honor of Michael Ruse, Cambridge University Press, forthcoming.
Sober. E. "Evolution without Naturalism," In Jonathan L. Kvanvig (ed.), Oxford Studies in Philosophy of Religion Volume 3. Oxford University Press, 2011, pp. 187-221.
É bem por ai mesmo, Rodrigo
Meu enrosco com o argumento de Sober é que ele é simplesmente falso quando aplicado a maioria dos casos reais. Afinal, a crença em deus dos opositores da evolução (ou da grande maioria da população) não é exatamente essa. O argumento dele se reduz a
"Teismo e evolução são compatíveis porque existe um secto religioso que consegue compatibiliza-los"
A ausencia de definições unicas de "religião" e "deus" faz com que quase qualquer coisa seja concebível que torne essas "coisas" compativeis com qualquer coisa. E ai está a raiz de possíveis equivocações:
"Intervencionismo teísta é possível segundo Sober, logo não há incompatibilidades entre teísmo e evolução"
Isso é obviamente errado, e deve ser apontado como tal.
Além disso tudo, o argumento de Sober não serve apenas a deus ou deuses, mas a qualquer força, fenômeno ou evento impossível de detectar, mas que afete "de vez em quando" mutações "intencionalmente".
Deus, um deles, talvez o deus cristão, poderia estar atuando na jogada de moeda número 456, e forçando sair coroa, em vez de um resultado realmente aleatório. E não seria possível detectar essa ação.
Mas isso se aplica também a aliens extradimencionais, duendes, fadas, forças cósmicas, e a qualquer elemento que se possa imaginar. Uma antiga civilização poderia estar "por trás" dessa ação, que gerou os tetrapodes, e não poderíamos detectar, provar ou "desprovar", que foi assim.
Se um religioso se sente confortável para descartar essa hipótese, de aliens condutores da evolução, por absoluta falta de evidências, e por ser impossível determinar uma ação tão sutil na aleatoriedade do processo, então deve entender que não religiosos façam o mesmo com a hipótese "foi deus".
A questão, para a ciência e para o pensamento racional, não é se tudo é possível, mas sim qual a probabilidade, de cada possibilidade.
http://homeroottoni.wordpress.com/2013/03/21/tudo-e-possivel-mas-quao-provavel-e-cada-possibilidade/
Um abraço e parabéns pelos artigos sobre essa questão, estão excelentes.
Homero
Mas isso é claro na definição de Sober. Ele não argumenta apenas em relação ao teísmo tradicional. Em tese todas estas coisas e entidades seriam compatíveis com uma compreensão puramente instrumental de nossas teorias e modelos científicos, já que são incompletos, portanto, caso não alterassem as predições baseadas nas definições operacionais de acaso, não haveria o que discordar. Mas a maioria das pessoas não tem uma visão da ciência puramente instrumental das ciências, mesmo os religiosos e muitos religiosos acreditam em milagres e em uma participação bem mais ousada destas entidades em nosso mundo natural, o que é certamente incompatível mesmo com a perspectiva 'acomodacionista' de Sober e ele deixa claro ao falar do criacionismo tradicional e do DI. Outra coisa é que a definição de sobrenatural, empregada por Sober, é um tanto peculiar já que ele considera assim qualquer entidade que não seja limitada espaço-temporalmente e que possa interferir na natureza, o que inclui entidades não pessoais. Portanto, a definição dele é mais abrangente e incluiria um domínio transcendental e não apenas mentes não-físicas não delimitadas no espaço e tempo.
Como eu disse, é um ponto sutil, pois o próprio Sober não alega serem plausíveis estas visões sobrenaturalistas comedidas que seriam compatíveis com a ciência moderna e com a biologia evolutiva, em especial, o que ele enfatiza é que as considerações de plausibilidade são extracientíficas, típicas de um domínio mais amplo da discussão racional. E é nisso que concordo com ele. Estas distinções são importantes, especialmente, para os fins legais que ele tem em mente em relação a questão da primeira emenda e a justificação do banimento do criacionismo nas salas de aula e a manutenção do ensino de evolução. Contudo, Homer, como você e o Fábio colocam, isso pode ser facilmente distorcido e apropriado pelos religiosos intervencionistas tradicionais (que são maioria), como se a argumentação de Sober significasse que mesmo os grandes milagres e uma evolução guiada que violasse, inclusive, nossas definições operacionais de acaso fossem coerentes como a moderna ciência, quando elas de fato não são. Ou seja, cobre-se o rosto e deixam-se os pés de fora. :)
O que Sober oferece é muito pouco para os teístas tradicionais, mas realmente pode facilmente ser usado como peça retórica para forçar a aparência de uma compatibilidade muito maior do que a possível e que, na verdade, viola vários princípios científicos.
Aliás, vocês viram a palestra do astrofísico Sean Carroll na qual ele explica como a moderna teoria de campos e vários experimentos em física de partículas inviabilizam a existência de outros tipos de forças e interações, ao nível fundamental, relevantes para a nossa compreensão da natureza? Não há a espaço para qualquer papel relevante para novas interações paranormais ou sobrenaturais, a não ser que tudo que sabemos sobre física esteja completamente errado. Neste caso, iríamos precisar não só de uma nova teoria fundamental que explicasse estes novos fenômenos e interações e que explicassem, com igual ou maior precisão, todo o resto que a atual teoria de campos explica. O ônus para os paranormalista e sobrenaturalistas é gigantesco a menos que eles aceitem a irrelevância prática de entidades deste tipo, que é o que Sober lhes garante. É um ponto que pouca gente 'do outro lado' se dá conta. :)
http://www.youtube.com/watch?v=1ypyVjSaj4w
[ ]s
Boa noite.
O que é um "Apple hipster"?
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