Semana passada Peter Saunder compilou uma lista de 20
perguntas a ateus que, segundo ele, não tiveram respostas decentes nos últimos
40 anos. Decentes para Saunder, pelo menos. De qualquer forma, eu falho em ver
o ponto dessas perguntas. Afinal, a incapacidade ou dificuldade de ateus
responderem tais perguntas não torna uma alternativa supernatural
necessariamente uma resposta válida. Adicionalmente, muitas dessas perguntas
tem cunho científico. Qual é a suposição oculta aqui? Que apenas ateus são
cientistas (ou que ciência é ateia?).
Não tenho a pretensão de responde-las
completamente, principalmente porque algumas delas requerem o mínimo de pesquisa
(e acreditem ou não, eu tenho outras coisas para fazer). De qualquer forma acho
válido registrar minha opinião sobre esses assuntos.
1) O que causou a existência do
universo?
Eu não estava ciente que já haviam
demonstrado que o universo tinha tido uma causa. Afinal, a pergunta não é se o
universo tem uma causa, mas qual é ela. Essa pergunta pode ir
para qualquer lado. Afinal, se formos igualar "universo"="o que
teve inicio com o Big Bang", então existem muitas respostas possíveis,
incluindo a resposta dada por Lawrence Krauss. Note que a resposta de Krauss
não responde "por que existe algo e não nada", mas responde o porque
o que existe assume a configuração que vemos, sendo que essa configuração é o
que "teve inicio com o Big Bang". Outra possibilidade é
simplesmente que o universo não teve uma causa, seja porque ele é eterno, ou
seja porque ele tem uma origem a-causal.
Responder porque existe algo e não nada
é uma pergunta diferente.
2) O que explica o ajuste fino das
constantes universais?
O ajuste fino das constantes
universais, até onde me consta, é a descrição de um padrão visto nas leis
usadas para descrever o comportamento dos sistemas físicos. Ou seja, o ajuste
fino é apenas um padrão das nos parâmetros de modelos descritivos. Visto que
tais leis lidam com contextos muito específicos e livres de erros, o "ajuste"
dos parâmetros é uma simples função da ausência de erro nesses sistemas (ou
erro nos experimentos criados para testa-las).
Perguntar o que causa o ajuste fino das
constantes universais me soa como uma falácia de equivocação, na qual
substituímos os modelos descritivos do universo pelo universo e assumimos que,
visto que números variam em uma escala, e tais modelos tem parâmetros
(constantes) numéricas, logo tais constantes poderiam assumir quaisquer
valores. Eu não estou certo de que isso é possível.
3) Porque o universo é racional?
Até onde sei, racionalidade é uma
propriedade de cérebros, e não de universos. Talvez a pergunta seja
"porque o universo pode ser descrito racionalmente?". Se de fato a
pergunta for essa, me parece que nossa capacidade de entender o universo é uma
função do fato de que o universo é ordenado e que nossos cérebros evoluíram
nesse contexto, nos fornecendo ferramentas para interpreta-lo.
Um exercício interessante é tentar
imaginar como seria um universo que não é descritivel de forma racional. Tal
"universo irracional" impediria qualquer tipo de inferência racional,
o que me parece o mínimo necessário para o surgimento de seres racionais. Ou
seja, se existisse vida em tal universo (o que eu também acho que seria
impossível, visto que não haveria transferencia de informação), ela
simplesmente nunca evoluiria para ser "racional", pelo menos não da
maneira que nós somos. Porém imagino que existiria a possibilidade de algum
tipo de processamento axiomático eficiente e extrapolável, basicamente porque
parece um jeito eficiente e versátil de exploração da realidade.
4) Como DNA e aminoácidos surgiram?
Através de processos químicos. Os
aminoácidos são a parte mais fácil, obviamente. Desde os experimentos de
Urey-Miller que sabemos que é possível criar aminoácidos através de processos
químicos. Muito se fala que as condições ambientais simuladas nesses
experimentos não refletiam as condições reais da Terra primordial, porém
normalmente se deixa de fora o fato de que experimentos recentes, com condições
mais próximas dos modelos atuais para atmosfera primitiva, conseguem
produzir mais aminoácidos que os experimentos originais.
No caso do DNA a questão é um pouco
mais complicada, porém tanto a origem de nucleotídeos quanto a polimerização de
polinucleotideos pode ser atingida naturalmente. A formação de cadeias mais
longas e codificantes provavelmente envolveu algum tipo de processo biológico.
5) De onde veio o código genético?
Existem 3 principais teorias da origem
do código genético. A primeira é a teoria estero-quimica, na qual a associação
entre códon, anti-codon e amnoácidos se dá por afinidades fisicoquímicas. A
segunda é a teoria coevolutiva, que postula que a estrutura do código
co-evoluiu com as rotas catalíticas dos amnoácidos. A terceira é a teoria do
"acidente congelado", na qual o fato de todos os organismos terem o
mesmo código simplesmente por compartilhar um ancestral comum. Tais
teorias não são mutualmente exclusivas.
6) Como cadeias de enzimas
complexamente irredutíveis evoluem?
Vale lembrar que complexidade
irredutível é definido de diversas formas, porém a mais usual é "uma
estrutura complexa que deixa de exercer uma função se uma de suas partes é
removida". Disso normalmente se infere que é impossível evoluir tal estrutura
por seleção natural, visto que é impossível exercer seleção para a melhora de
uma função, sendo que o estado anterior hipotético não poderia ter essa função.
Nesse contexto, basta termos rotas metabólicas que exercem outras funções sendo
coaptadas para exercer uma nova função. Basta que o passo anterior seja
levemente mais benéfico para o organismo que o anterior. Na verdade, acredito
que muito da questão da complexidade irredutível vem do fato de que
criacionistas avaliam as rotas metabólicas individualmente, ignorando que elas
estão em organismos em um contexto ecológico. Mesmo uma pequena queda de aptidão
para dada função pode ser compensada por um incremento maior de aptidão em
outra característica. O que importa é a aptidão total do organismo e,
consequentemente, a aptidão média da população.
Isso torna a dinâmica evolutiva
bastante complicada e não linear, visto que não podemos traçar a evolução de
dado sistema simplesmente avaliando a função atual do sistema. Mas o fato
de ser complicado não significa que é impossivel, como os criacionistas
costumam achar.
7) Como nós podemos explicar a origem
de 116 famílias linguisticas distintas?
Suponho que através de algum principio
de evolução cultural. Afinal, as famílias podem ser construtos artificiais que
reconhecemos como discretos apenas porque as informações que agrupavam
distintas famílias em grupos mais inclusivos foram superescritas por um longo
processo de desenvolvimento cultural. As evidências parecem apontar para o fato de que a
origem linguística é única e que processos culturais e padronização geográfica
são essenciais para entender a evolução da linguagem.
8) Porque cidades surgiram subitamente
por todo o mundo entre 3000 e 1000 AC?
Até onde sei, 2000 mil anos não é
"súbito", principalmente em termos de história humana. De qualquer
forma, eu não sei se isso é verdade. Até onde sei, as primeiras cidades datam
de até 7500 AC (Eridu - 5400AC; Uruk- 4000AC; Ur-
<3000AC; Çatalhöyük-7500AC), o que é consistente com
a idea de que a construção de ocupações mais permanentes e do
estabelecimento de grandes áreas agricultáveis só foram possíveis com o aumento
da temperatura após o ótimo climático do Holoceno.
9) Como é possível a existência de
pensamento independente em um mundo governado por acaso e necessidade?
O que essa pergunta quer dizer
exatamente, eu não tenho certeza. Saunder parece querer insinuar que
necessidade implicam em ausência de escolha e que acaso implica em acausalidade
e que pensamento independente (presumidamente livre-arbítrio) ocorre. Porém se
minha interpretação está correta, essa pergunta é igual a uma que veem a seguir
(explicitamente sobre livre-arbitrio).
Acho que nesse momento não é possivel
responder a pergunta sem entender exatamente o que "pensamento
independente" é.
10) Como explicamos a
auto-consciência?*
Provavelmente como uma função superior
de um cérebro complexo e modular, surgido através de evolução. Até onde
sabemos, autoconsciência ("self-awareness") está presente não apenas
em humanos, chimpanzés, orangotangos e até alguns macacos. Apesar disso indicar que existe
uma origem evolutiva comum para a consciência, nem todos grandes primatas
apresentam a capacidade de auto-reconhecimento (usado como indicio de
consciência), o que sugere que as bases para a consciência podem estar
presentes em diversos graus em diferentes linhagens de primatas, mas as
condições específicas para o seu surgimento possam envolver mais fatores, como
capacidade de aprendizado, por exemplo.
11) Como o livre-arbítrio é possível em
um mundo determinista?
A resposta é fácil: ele não é. Ou
ao menos o livre-arbítrio libertario. Agora, se formos usar
a definição de livre-arbítrio compatibilista, pela própria
definição, o livre-arbítrio seria compatível com determinismo (não que eu
entenda o ponto do livre-arbítrio compatibilista como sendo um tópico para
discussão).
12) Como explicamos a consciência?*
Sabemos que pessoas com lesões
cerebrais tem capacidades de raciocínio moral modificadas ou prejudicadas, como
no famoso caso do Phineas Gage. Ou seja, a capacidade de pensamento
moral são contingente em características estruturais de nosso cérebro.
Curiosamente, muitas características típicas do comportamento de culpa
estão presentes em outros animais sociais , e são
usados como reforço de relações sociais e para minimizar os efeitos das
transgressões contra parceiros de grupo, o que estabelece um continuo natural entre
o comportamento visto nesses animais e o nosso comportamento moral.
13) Qual é a base de nossos julgamentos
morais?
Nossas vontades, nossa capacidade de
empatia e, sobretudo, razão. Não é nada mágico se você para pensar. Todos nós
queremos coisas e sentimos obrigações morais para com outros membros de nosso
grupo social. Não apenas isso, tais coisas que queremos normalmente são
realizadas por intermédio da sociedade (que seja comprar uma Ferrari, afinal,
você não tem uma manufatura de Ferraris no seu quintal), o que torna a
transformação da sociedade um instrumento essencial para que possamos conseguir
essas coisas. Claro, outros membros de nossa sociedade despertam nossa empatia,
mas também nosso medo, é isso que significa ser parte de uma espécie de animais
sociais. Sendo assim, regras gerais de conduta são estabelecidas para um
convívio social menos tenso.
Na minha opinião, a regra de ouro continua sendo o melhor ideal
de conduta social, porém isso nem sempre leva em conta o fato de que os outros
membros da sociedade podem ser cretinos e simplesmente fazer com você
exatamente o que não querem que seja feito com eles.
14) Porque sofrimento importa?
Bom, ele não importa, ao menos para a
grande maioria do universo. Ele importa para nós. O porque disso
decorre, como falei acima, de nossa natureza (como um animal) social e nossos
desejos para uma sociedade melhor (que está implícito em nossa busca por coisas
boas). Nesse tipo de sistema, sofrimento é um indicativo relativamente forte de
que as coisas andam mal e que, se um numero grande de pessoas sofrem no seu
convívio social, é bem provável que você venha a sofrer também.
15) Porque seres humanos importam?
De novo, eles importam para nós, que
somos humanos pelos mesmos motivos colocados acima. Nós vivemos em um meio
social: sem isso, até o mais desfavorecido dos seres humanos seria apenas um
louco no meio do mato sem a capacidade de articular um pensamento coerente, se
muito. Até em nossos estados mais primitivos nós dependíamos de nosso bando. Ou
seja, imaginar um ser humano isolado do resto de seu convívio social é quase
como remover do sistema qualquer pessoa que possa vir a se importar com algo.
16) Porque ligar para justiça?
Porque ela faz parte de uma sociedade
funcional onde é possível (ao menos em tese) conseguir as coisas que desejamos,
através da transformação da sociedade, como já coloquei. A justiça é o
mecanismo que tenta impedir que cretinos (ou sociopatas) sejam cretinos.
Porém se a palavra justiça está
relacionada à "retribuição", então a resposta é que devemos ligar
para ela porque algumas pessoas precisam disso para fazer algum tipo de
racionalização de injustiças cometidas contra elas ou contra entes queridos.
Retribuição, na forma de punição estatal, parece apenas funcionar como um
dispositivo de coesão social, nesse sentido. Minha opinião é que, na maioria
dos casos, não precisamos deles.
17) Como explicamos a quase universal
crença no supernatural?
Através de predisposição cognitiva
humana à pensamento teleológico e intencional (referencias aqui, aqui e aqui). O que isso significa é que nós temos uma
capacidade inata de reconhecer propósito e intencionalidade na natureza, mesmo
quando essa não existe. Tal predisposição é independente de nossa bagagem
cultural (principalmente por estar presente antes de que qualquer aprendizado
expressivo ocorra), o que significa que não é religião que a perpetua, mas que
ela é um dos mecanismos através da qual nossas crenças supernaturais se
expressam. Tais mecanismos parecem ser exatamente os mesmos por trás do reconhecimento de design na natureza. Tais
predisposições inatas parecem correlacionar negativamente com o nível de
instrução até mesmo em idades pouco avançadas, sendo substituídas aos poucos
por raciocínio mediado por regras (aprendidas). Não tão espantosamente, parece
haver uma influencia negativa de religiosidade em grau
de escolaridade científica.
18) Como sabemos que o supernatural não
existe?
Eu não sei se tal pergunta sequer faz
sentido. Em quase qualquer definição de "supernatural" que eu consiga
conceber, a detecção dele implicaria que tal coisa que foi detectada não é
supernatural, apenas desconhecida. Se o supernatural "real" existe de
fato, ele não é apenas indetectável, como também não influencia nada em nossa
realidade. Ou seja, o supernatural pode existir de forma que não ajude em nada
o argumento teísta.
19) Como podemos saber se existe uma
existência consciente após a morte?
Da forma que vejo, através de ciência.
Afinal, basta descobrir um procedimento pelo qual nossa mente pode ser
transmitida através de algum tipo de meio para tal tipo de existência. Existe
um pequeno porém ai: sabemos que nossa mente é uma função fisiológica de nossos
sistema nervoso central, que é amplamente influenciada não apenas pela
conformação específica de sinapses de cada cérebro individual, assim como
outros sistemas do nosso corpo. O que entendemos por "mente" é um
aspecto de nosso corpo físico. Tal aspecto poderia ser transmitido para esse
outro meio (não vejo nenhum tipo de impossibilidade lógica em isso acontecer),
porém isso me parece que envolveria algum tipo de transferência de
massa/energia para esse outro sistema (afinal, nossas mentes são materiais). E
mesmo assim, não vejo como isso necessariamente implicaria em
"consciência". Afinal, a mente age através do corpo, e remover um
aspecto apenas e dizer que aquilo apresenta as mesmas propriedades que o todo
possuía (pelo menos a propriedade que nos importa) não me parece muito
justificado. Seria como fazer um backup de um GPS de um carro e ainda assim
achar que o seu pendrive pode te levar até Ubatuba.
20) Como explicar a tumba vazia, as
aparições de Jesus após a morte e o crescimento da Igreja?
Eu não estou sequer convencido que
Jesus realmente foi uma pessoa real (como acho que deixei a entender nesse post). A tumba vazia, assim como as
aparições podem ser explicadas por qualquer outro mecanismo que gerou outros
mitos equivalentes. Mesmo um cristão pode entender isso, a não ser que ele
também aceite a ressurreição de Hercules, Apolônio de Tiana, Julio Cesar ou, em
um exemplo mais recente, Elvis Presley. De forma equivalente, o crescimento da
Igreja cristã pode ser explicado igualmente pelo mesmo processo que promoveu o
crescimento de outras igrejas que apresentaram uma rápida expansão como o Islã.
Ou seja, a não ser que alguém advogue
algum tipo extremo de sincretismo religioso (todas as religiões são verdadeiras
ao mesmo tempo), todos nós vamos usar argumentos similares e naturalistas para
explicar qualquer um desses fenômenos.
*Autoconsciência é do original
"self-awareness" e consciência é do original "conscience".
Apesar de ambos serem traduzidos como "consciência", o significado
(pelo contexto e pelas discussões) parecia ser diferente: 1) capacidade de
introspeção e de se reconhecer como aparte de outros e do meio e 2) guia moral
interno, para autoconsciência e consciência, respectivamente.
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