sábado, 9 de março de 2013

Porque você acha que seu chefe é idiota




via diogro


Já teve a sensação de ser mais competente que seu chefe? É uma sensação incrivelmente comum, porém completamente contra-intuitiva. Afinal, espera-se que que um chefe tenha atingido seu posto na hierarquia de uma empresa após demonstrar competência, e por trazer benefícios à instituição. Como poderia alguém que foi considerado tão competente por outrem ser aos seus olhos tão estúpido, ou, mais especificamente, menos competente que você? Afinal, se você é mais competente que seu chefe, você não deveria estar no cargo de chefia?


Esse sentimento foi imortalizado nos quadrinhos Dilbert, no personagem do Chefe: um individuo ignorante, incompetente e totalmente alienado da realidade da empresa (e, em alguns casos, do mundo)






-Nós precisamos de mais programadores
-Use  métodos ágeis de programação
-Programação ágil não significa apenas que famos fazer mais trabalho com menos pessoas
-Então me ache alguma palavra que signifique* isso e me pergunte novamente.

*[haeck]: Ha, notaram o que eu fiz? De novo a coisa toda de significado.
Para investigar essa questão, Plushino e colegas recorreram a uma solução criativa: eles retomaram um princípio proposto pelo psicólogo canadense Laurence J. Peter nos fins dos anos 60. Segundo Peter: 


'Cada novo membro em uma organização hierárquica sobe na hierarquia até que ele/ela atinja seu nível de máxima incompetência'

Ou seja, segundo este princípio, quanto mais alto um individuo avança na escala hierárquica de uma empresa, mais incompetente ele se torna, até atingir o ponto mais alto, onde sua incompetencia será igualmente maior.



Representação esquemática de uma organização hierárquica. Quanto mais escuro o individuo, maior o seu nivel de competência. À esquerda temos os valores médios de competência para cada nivel, que vai aumentando na medida que subimos na hierarquia. Esse exemplo representa nossa ideia intuitiva de progresso hierárquico, onde o melhor individuo de uma camada inferior é escolhido para compor a camada superior, e assim sucessivamente. De Plushino et al.

Os autores colocam no resumo:



Apesar de não aparentar razoável, esse principio agiria realisticamente em qualquer organização onde o mecanismo de promoção recompensa o melhor membro e onde a competência no nível atual não depende da competência que ele possuía em níveis anteriores, usualmente porque a tarefa nos diferentes níveis são muito diferentes umas das outras.

Ou seja, um padeiro, por melhor que ele seja em fazer pães, não precisa saber muito sobre administrar uma padaria. Ou seja, promover o melhor padeiro para administrador pode não ser a melhor jogada.


Para investigar a possível influência do Princípio de Peter em uma organização hierárquica, os pesquisadores produziram um modelo bem simplificado, no qual eles simulavam os diversos individuos da hierarquia como apresentando apenas duas características: competencia global e idade. A seguir, eles distribuíram os individuos nas diversas hierarquias, e iniciaram as rodadas da simulação. Cada rodada consistia na avaliação da competencia global do indivíduo e sua subsequente demissão ou promoção, sendo que individos acima de 60 anos se aposentavam. Eles também testaram dois diferentes cenários: no primeiro, chamado de "Hipótese de Peter", os indivíduos, quando movidos para uma hierarquia superior, ganhavam um novo valor de competencia (pois, afinal, administrar tem pouco a ver com fazer pães). No segundo cenário, chamado de "Hipótese do Senso-Comum", os individuos mantinham sua competencia quando subiam na hierarquia. Adicionalmente, os pesquisadores investigaram a influencia de 3 diferentes estratégias de promoção nesses dois cenários diferentes: a primeira é quando o melhor funcionário é promovido para a hierarquia superior ("The Best"), a segunda é quando o pior é promovido ("The Worst") e a terceira os funcionários são promovidos aleatoriamente ("random"). Eles então mediram a eficiência global da organização, para ver o efeito das hipóteses e das estratégias de promoção em uma organização.


Os resultados são bem curiosos:



De Plushino et al.

As linhas representam a evolução da competencia global da instituição nas diferentes hipóteses: em vermelho vemos a Hipótese de Peter e em preto temos a Hipótese do Senso Comum. As diferentes linhas de uma mesma cor representam as diferentes estratégias de promoção.

Ou seja, segundo essa simulação, se uma organização na qual o Princípio de Peter não atua (Senso Comum) a promoção de individuos competentes leva a um aumento global na performance da instituição, enquanto promover o pior indivíduo piora a performance da instituição. Promoções aleatórias são intermediárias, como esperado. Agora, em uma organização onde o Princípio de Peter atua, o resultado é oposto: promover os indivíduos melhores piora mais a performance de uma instituição do que promover os piores individuos de uma instituição sem o Princípio. A solução que aparentemente melhora a produtividade média da instituição é a promoção dos indivíduos piores. Novamente, a promoção aleatória apresenta valores intermediários de competencia global.


A partir disso, os autores concluem:



Nosso estudo computacional do Princípio de Peter aplicado a uma organização prototípica com uma hierarquia piramidal mostra que a estratégia de promover os melhores membros, no cado da Hipótese de Peter induz um rápido decréscimo de eficiencia.

Eles ainda adicionam que a estratégia de promoção mais segura para a organização, seria a promoção aleatória, que no pior dos casos, não implicaria em um decréscimo da eficiencia global de uma organização.


Agora, eu não faço a menor ideia de o quanto o Princípio de Peter é empiricamente verificado. Me parece complicado conseguir medir "competência" de forma objetiva, principalmente quando estamos comparando entre ocupações muito diferentes (como presumidamente elas precisam ser para o princípio de Peter ser válido). 


Mas, supondo que seja verdade, o que isso faz com as nossas noções de "meritocracia", até mesmo no contexto acadêmico? O quanto a eficiencia de um estudante é determinante para o seu sucesso universitário ou profissional? O quanto nossas avaliações de mérito acadêmico refletem de fato o que se espera da pessoa, a partir do momento que ela ganha a "promoção" (passa no vestibular, conclui a graduação, etc)? Isso explicaria talvez o fato de que alguns cotistas apresentam desempenho acadêmico melhor ou igual aos não-cotistas, mesmo tendo notas mais baixas no vestibular?


Referência

Pluchino, A., Rapisarda, A., & Garofalo, C. (2010). The Peter principle revisited: A computational study Physica A: Statistical Mechanics and its Applications, 389 (3), 467-472 DOI: 10.1016/j.physa.2009.09.045

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

A irrelevância terminológica do Homossexualismo




A alguns dias atrás, a primeira página da Folha de São Paulo me chamou muita atenção, por conter a chamada para um editorial de Helio Schwartsman, no qual ele defende os homossexuais e ataca o Pastor Silas Malafaia. Schartsman coloca que o Pr. Malafaia tem a liberdade de colocar a opinião que quiser como pastor, mas quando emite seu parecer como psicologo, tem o dever moral de se ater às evidencias (o que sugere, ao meu ver, que suas opiniões como pastor não seguem nenhuma dessas linhas):

A coisa muda um pouco de figura quando o indivíduo fala na condição de psicólogo ou membro de outra categoria profissional que se apoie, ainda que imperfeitamente, numa ciência. Do mesmo modo que um médico não pode sair por aí dizendo que cura doenças incuráveis, um psicólogo não pode proclamar que possui terapias efetivas contra o que seu ramo de saber nem sequer considera moléstia. Não se pode bater de frente e em público contra os consensos da disciplina. Diversas disposições do Conselho Federal de Psicologia proíbem seus profissionais de "patologizar" o homossexualismo.

Porém, como é vidente, Schartsman usa o termo "homossexualismo" e não "homossexualidade", o que costuma causar desconforto nos membros do movimento gay. E tanto foi que ele emitiu um novo editorial onde ele defende o uso do termo e rebate as críticas:


Ao contrário do que dizem alguns militantes, simplesmente não é verdade que "-ismo" seja um sufixo que denota patologia. Quem estudou um pouquinho de grego sabe que o elemento "-ismós" (que deu origem ao nosso "-ismo") pode ser usado para compor palavras abstratas de qualquer categoria: magnetismo, batismo, ciclismo, realismo, dadaísmo, otimismo, relativismo, galicismo, teísmo, cristianismo, anarquismo, aforismo e jornalismo. Pensando bem, esta última talvez encerre algo de mórbido, mas não recomendo que, para purificar a atividade, se adote "jornalidade".


De fato, a crítica ao uso do termo "homossexualismo", por esse denotar doença é um tanto descabida, ainda mais que o termo foi usado explicitamente para rebater essa associação absurda.

Isso não significa que outros motivos melhores para negar o termo não tenham sido feitos. Um exemplo é argumentar que homossexualismo não possui o análogo para heterossexualidade, que seria "heterossexualismo". É um ótimo ponto, mas irrelevante para mim. Meu interesse é debater ideias e conceitos, e não terminologia. Utilizar um termo de maneira incorreta, para mim, significa usar um termo que não reflete o conceito que quero transmitir, e essa não parece ser a briga entre -ismoX-dade.

Por motivo similar, não encho o saco da Sociedade Racionalista porque não sigo o racionalismo, ou da Liga Humanista Secular porque o humanismo é antropocentrista. Sei o que esses grupos querem dizer por "Racionalismo" e "Humanismo" e isso me basta para uma comunicação eficiente de significados.

Em momento algum, antes de ser chamado a atenção sobre esse ponto, usei o termo "homossexualismo" para denotar uma "doença" ou condição que requer cura. A troca do termo para mim foi apenas uma transferencia de significado: nada novo foi aprendido ou revelado, exceto o fato de que pessoas podem se ofender pelo uso do termo que eu originalmente usava, o que me bastou.

Essa ideia de que palavras carregam em si conceitos inalienaveis é "politicamente correta" (no sentido que já utilizei antes) demais para o meu gosto. Mas de forma análoga, não acho que a defesa do uso do termo "homossexualismo" como sendo válida faz sentido. Nessa categoria encaixamos indivíduos como o Pr. Silas Malafaia, que me parece usar o termo para denotar exatamente uma doença (o que é mais do que evidente a partir do seu discurso); e provavelmente para irritar pessoas, como estratégia retórica. O que pode ser chamado, tecnicamente, de "dar uma de cretino".

Isso tudo não significa que não existem motivos para rejeitar o uso do termo "homossexualismo". Em uma sociedade plenamente racional, imagino, pessoas reconhecem as limitações linguísticas deles mesmos e dos outros, e batalham para quebrar "barreiras semânticas" para engajar conceitos de forma eficiente.

Porém a falha desse raciocínio é obvia: não vivemos em uma sociedade plenamente racional. Pessoas confundem termos por conceitos, e normalmente recaem no que é chamado de "falácia da equivocação": usar um termo que pode apresentar dois ou mais significados, intercambiando-os de forma inapropriada. O exemplo mais clássico e desprezível (também usado pelo Pr. Malafaia) é se referir a Teoria da Evolução como "apenas uma teoria" (ver aqui o porque isso está errado). Assim sendo, usar o termo "homossexualidade" ao invés do termo "homossexualismo" pode evitar equívocos de comunicação, como os críticos de Schartsman que, aparentemente incapazes de ler, o criticaram por defender uma posição que ele explicitamente rejeitou.

Então, pelo bem da comunicação, use "homossexualidade". Não seja preguiçoso.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Ciência é que nem salsicha


Rigor metodológico sempre foi um dos principais méritos da Ciência. A delimitação e exposição honesta da metodologia de um trabalho científico é o que permite que outros pesquisadores e estudantes repliquem seus achados de forma a valida-los ou refutar suas conclusões.

Bem, isso na teoria.

Na prática, ciência é muito parecida com qualquer outro trabalho: muitas vezes temos que cumprir protocolos e resolver problemas em condições sub-ótimas, em contextos alucinados, em meio a problemas pessoais e profissionais. Ou seja, é uma zona.

Motivado por esse contexto caótico, ontem estourou um hashtag #OverlyHonestMethods no twitter, que seria melhor traduzida como "Métodos Honestos Demais" ("Métodos" faz referência à parte de um artigo científico onde está delimitado o protocolo experimental que foi seguido). Milhares de cientistas e estudantes manifestaram de forma bem humorada situações da parte humana do cotidiano acadêmico.

Eu obviamente me deleitei (e ainda estou me deleitando) com essa HT (que, segundo o Igor Santos, "é como a galera legal cita hashtag a partir de agora"). O Bernardo Esteves da Piauí fez uma compilação e tradução de algumas, mas para os que entendem ingles sugiro visitar aqui e aqui para listas bem maiores e melhores. Mas como os twits não param, aconselho seguir a HT, que é diversão garantida.

Agora, como sou levemente egomaníaco (afinal, é o meu blog!), abaixo vou compilar traduções dos meus twits. Talvez não sejam os melhores (os biólogos moleculares parecem ficar com metade da diversão), mas eles refletem muito do que é a minha vida acadêmica. Obviamente existem hipérboles e sátiras, mas algumas passagens são bastante literais. Deixo para vocês descobrirem quais são quais.

(twits originais estão no link entre parênteses)

"O tempo de duração das gravações variou entre 30-50min. Esse era normalmente o quanto durava minha soneca pós-almoço." (link

"Nós desenvolvemos uma nova métrica para excluir todos os parâmetros que precisariam ser medidos através de trabalho de campo árduo" (link

"Nós apenas correlacionamos a porra toda e então achamos algumas racionalizações engenhosas na literatura"  (link

"Código está disponível através de pedido, porque nós conseguimos programar em C, mas não temos a menor ideia de como construir uma página da internet"  (link

"Todos os nossos resultados foram não-significantes no nível de alfa=0.05, então nós começamos a aprender estatística bayesiana"  (link

"Nós diminuímos a variância residual em nossa regressão linear aumentando o tamanho dos pontos"  (link

"Por sorte, a curva de acumulo de espécies estabilizou quando um morcego raivoso mordeu minha mão" (link

"As redes de neblina foram abertas das 8pm até 11pm porque a siesta durou um pouco mais naquele dia" (link)  

"O revisor sugeriu um teste de normalidade para o uso de estatísticas não-paramétricas, mas SÉRIO cara, os caracteres tem apenas 2 malditos estados!" (link

"Nós transcendemos a epistemologia Popperiana porque nos demos conta de que nosso trabalho era infalseável"  (link)

A Veja falou de papeis de gênero, confundiu com orientação sexual e (quase) ninguém notou


Já deve fazer mais de um mês que tivemos aquele lindo editorial "Parada Gay, cabra e espinafre” do José Roberto Guzzo na Veja sobre homossexualidade que causou tanta revolta e discussão. O editorial foi desconstruído de quase todas as formas possíveis, sendo que a melhor, de longe, foi a produzida pelo deputado Jean Wyllys.

O que poucos notaram, entretanto, é que na semana seguinte desse fiasco a mesma revista produziu uma matéria intitulada "Educados no sexo neutro". A matéria é tão repulsiva que sugiro um bom anti-ácido antes da sua leitura (ela pode ser lida na integra aqui). Estranhamente, apesar do assunto e enfoque serem afins do da matéria do Guzzo, quase ninguém notou sua existência na época, com exceção talvez da Jaqueline Jesus, uma psicologa que escreveu um post bastante explicativo (e referenciado) sobre o assunto.

A tese central da matéria está explicada na sua chamada:

"Uma corrente pedagógica defende a tese de que meninos e meninas devem ser criados de forma igual. O perigo é confundi-los acerca de sua sexualidade" 
A matéria segue explicando que:
"Segundo esse ponto de vista, não se deve influenciar a criança a adotar comportamentos que sempre foram vistos como típicos de seu sexo. A educação de gênero neutro abriga um objetivo nobre que, para ser alcançado, exige práticas arriscadas. A ideia dos que advogam essa corrente pedagógica é eliminar de uma vez por todas os velhos padrões que põem a mulher como dona de casa e o homem como o macho provedor, a mulher como o ser delicado que atende às vontades masculinas e cuida da prole. A liberdade de escolha para inverter os papéis tradicionais, para quem segue essa corrente, é um exemplo positivo na educação dos filhos."
Mas como isso pode influenciar negativamente a sexualidade das crianças não é explicado. A matéria, entretanto, dá dois exemplos. O primeiro é referente a filha do casal Angelina Jolie e Brad Pitt:

Shiloh Jolie Pitt- Uma criança que aparentemente não é
mais linda e sexualmente confusa ¬¬
"Eles dizem criar sua filha Shiloh, hoje com 6 anos, dentro das normas da educação de gênero neutro. Angelina já foi vista comprando roupas de menino para Shiloh. Permite que a menina use gravata, sapatos masculinos e cortes de cabelo idem. A atriz costuma se desentender com a sogra, que insiste em presentear a neta com roupas femininas e fantasias de princesa. O resultado é que o lindo bebê que aparecia no colo de Angelina em seu primeiro ano de vida hoje surge nas fotos com a aparência masculinizada."
Tirando a total repulsa que qualquer ser humano decente deveria sentir depois de ler essa frase, fica a pergunta: como esse exemplo corrobora a afirmação de que educar crianças nessa linha pedagógica "confunde sua sexualidade"? A menina tem 6 anos! Que tipo de sexualidade uma criança dessa idade deveria ter? É isso que os jornalistas da Veja estão advogando agora? Sexualidade em crianças pré-púberes?

O segundo exemplo é mais repulsivo ainda:
"Até hoje a ciência não descobriu se a homossexualidade é inata ou adquirida no meio social, mas já se tem certeza de que toda criança nasce com predisposição a desenvolver características psicológicas do sexo a que pertence. A literatura médica está repleta de casos em que os pais tentaram dar outra orientação sexual aos filhos, com resultados lamentáveis. O caso recente mais conhecido é o do canadense David Reimer. Em 1966, antes de completar 1 ano, Reimer teve o pênis extirpado numa cirurgia de circuncisão desastrada. Seus pais cruzaram os Estados Unidos para consultar o psicólogo Jolin Money, na época considerado uma autoridade em diferenças entre os gêneros. Money aconselhou uma cirurgia de mudança de sexo, com a construção de uma vagina artificial seguida de um bombardeio de hormônios femininos. Na ocasião, Money tentava comprovar a teoria de que não eram as características físicas que determinavam o sexo, e sim a educação dada pela família. Os pais concordaram com a cirurgia e Reimer, rebatizado de Brenda, foi criado como uma menina. Logo se constatou o fracasso da empreitada. Aos 2 anos, Reimer rasgava seus vestidos com raiva. Recusava-se a brincar com bonecas. Mais tarde, na escola, sofria bullying por causa de seus trejeitos masculinos. Seus pais só lhe contaram sobre a cirurgia de mudança de sexo aos 14 anos. Em 2004, aos 38 anos, Reimer se matou."
Agora, o caso do David Reimer é bastante conhecido e a matéria deixa de fora detalhes bastante convenientes sobre a história. Primeiramente, David tinha um irmão gêmeo Bryan, que não sofreu o mesmo infortúnio que ele. Apesar disso, o Dr. Money forçava os gêmeos a encenarem relações sexuais quando crianças. David afirmou lembrar ter que ficar "de quatro", com seu irmão por trás dele, forçando sua genitália contra sua bunda. Em outras ocasiões, ele tinha que ficar de barriga para cima, com as pernas abertas, enquanto seu irmão emulava penetrações. Como se não bastasse isso, Bryan desenvolveu esquizofrenia e foi encontrado morto dois anos antes do suicídio de David, em decorrência de uma overdose de antidepressivos. Alguem em sã consciência pode acreditar que isso é um bom exemplo de uma "tese de que meninos e meninas devem ser criados de forma igual"?

David Reimer - atormentado por seu psicologo durante a vida e depois
da morte por idiotas preconceituosos.



A matéria é um festival de lugares-comuns e bobagens heteronormativas. Confundem sexualidade com papel de sexo, sugerem que respeitar a identidade de gênero de crianças é "forçar" algo sobre elas e dão um péssimo exemplo de jornalismo. É uma matéria construída quase que exclusivamente para vender homofobia travestida de preocupação parental. E você pode convencer um pai de qualquer coisa, se ele acredita que o futuro do seu filho está em perigo.

A jornalista que escreveu essa matéria deveria se envergonhar.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Porque existem tão poucos evolucionistas negros?

Recentemente me deparei com o canal do youtube "Evolution: This View of Life" (A.K.A. EvolutionTVOL) comandado pelo David Sloan Wilson (que também tem um blog no ScienceBlogs). Aparentemente o canal consiste de entrevistas com pesquisadores da área de biologia evolutiva e exibe um formato muito interessante. A entrevista que mais chamou atenção foi a intitulada "O mito da Raça, diferenças raciais em saúde e porque temos tão poucos evolucionistas negros", com o biólogo evolutivo Joseph L. Graves.

Greves trabalha em uma área da biologia evolutiva muito interessante, tentando responder porque organismos envelhecem. Fora isso, ele também apresenta um interesse muito grande na interface de questões raciais e biologia evolutiva. Durante a entrevista Graves esclarece o porque ele acredita que raças humanas são um mito (basicamente porque temos pouquíssima divergência genética entre grupos) e explica brevemente sobre as causas evolutivas de problemas de saúde ligadas a adaptações alimentares de nossos antepassados (basicamente que quanto mais próxima é sua alimentação da dos seus antepassados, melhor para você).

Joseph L. Graves, primeiro PhD em biologia evolutiva
Negro dos Estados Unidos
Mas o que me chamou muita atenção foi a última questão, brevemente respondida no fim da entrevista, que é: Porque existem tão poucos biólogos evolutivos negros? De fato, em toda minha vida acadêmica só me recordo de ter conhecido um biólogo evolutivo negro (um pesquisador de Harvard, que não me recordo o nome). Graves, que foi o primeiro norte-americano negro a receber o PhD na área, estima que não existam mais do que 10 biólogos evolutivos negros nos EUA, e que biologia evolutiva é, de fato, a área acadêmica na qual os negros são menos representados.

Mas então, qual é a resposta para a questão? Bem, religião. Segundo Graves (que é religioso, por sinal), a comunidade negra norte-americana adotou o cristianismo de uma forma muito mais intensa e fervorosa do que os brancos. Especificamente, que eles adotaram uma perspectiva literalista e fundamentalista da bíblia, o que claramente contradiz os achados da biologia evolutiva.

Graves não deixa muito claro se essa é sua opinião ou se ele tem algum tipo de evidencia para corroborar esse cenário. Ele cita sua experiência pessoal lecionando para alunos negros, e o reconhecimento que eles rejeitam diversos achados da ciência por estes confrontarem com sua fé. Isso é de fato consistente com algumas evidencias sobre a influencia da religião no conhecimento científico (aqui e aqui), então me parece um cenário razoável. Graves ainda coloca que enquanto não reconhecermos essa fonte de conflito não poderemos resolver essa e outras questões relacionadas de forma satisfatória.

Eu confesso que essa talvez seja a minha maior bronca com os que afirmam que ciência e religião são compatíveis: na sua vontade de provar o seu ponto, eles convenientemente ignoram os casos onde o conflito é evidente. Ao argumentar sobre o que é possível, eles deixam de lado o que de fato é realidade. Afinal, sabemos que teológos são muito bons em inventar cenários que tornam a Biblia compatíveis com qualquer coisa, até com física quantica! Mas para cada tese teológica maluca existem centenas de milhares de crentes que acreditam na literalidade do Gênesis.

Então, onde deveríamos estar focalizando nossa atenção?